segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Memórias de horror do nazismo

História
Memórias de horror do nazismo
Helga Szmuk
VIVIANE BEVILACQUA




Os olhos azuis escuros de Helga Szmuk acompanham o movimento do mar na Praia dos Ingleses, em Florianópolis. A água salgada, a areia fina e a brisa morna lhe trazem muitas lembranças. Algumas boas, como as longas viagens de navio com o pai. Outras terríveis, como a fuga da Áustria, durante a ocupação nazista. Ela era apenas uma garota de 16 anos quando precisou trocar seu país por Israel, para não morrer em algum campo de concentração. Sozinha, longe da família e sem entender a língua, Helga foi obrigada a recomeçar sua vida. Nessa época, esta filha de judeus - uma "socialite" de Viena e um húngaro capitão de navio mercante - nem imaginava quantas vezes ainda teria de fugir e mudar de país, até chegar ao Brasil, na década de 1960. Aqui, encontrou sossego e tranqüilidade para criar seus filhos e dedicar-se à Astronomia, sua grande paixão. - Ainda bem que a gente não pode prever o futuro. Se quando jovem eu soubesse tudo o que sofreria na minha vida, com certeza teria me suicidado. Me faltaria coragem para enfrentar tudo aquilo - diz Helga, com seu forte sotaque alemão. Se há algo, porém, que nunca faltou a Helga foi coragem. Houve um tempo em que lhe faltou comida, e seus filhos pequenos tiveram que enfrentar filas, madrugada adentro, para garantir um pedaço de pão. Faltou-lhe também o marido, que trabalhava em Cingapura quando seu filho nasceu. Ficou sem dinheiro, e precisou morar numa pensão freqüentada por prostitutas. Mas coragem Helga sempre teve de sobra. Hoje, aos 84 anos, ela continua firme, forte e independente, qualidades que forjaram seu caráter desde menina. Em seu apartamento, conserva um pequeno tesouro: as fotos e documentos antigos, entre os quais o passaporte para sair da Áustria, durante a ocupação nazista. Na capa, uma letra "jota" grande, em vermelho, indicava tratar-se de uma judia, e que a viagem seria somente de ida. Suas histórias estão registradas na obra Da minha sacada, publicada apenas na Internet. Seus amigos e filhos há muito tempo insistiam para que ela escrevesse suas memórias. Resolveu atendê-los. A infância na Europa, entre o luxo de Viena e a vida no mar Viena, Áustria, 1922, início da Grande Depressão que abalou quase todo o mundo. Helga nasceu sob o regime socialista. A mãe era de uma família tradicional de Viena, amiga pessoal de Sigmund Freud e muitas outras personalidades da arte, ciência e música. Seu avô, no início da vida estudantil, sentava-se no banco da escola (pública) ao lado de Freud. O pai, um capitão da Marinha, era bem diferente: detestava Viena, e só sentia-se feliz no mar. Helga vivia, então, entre os dois mundos. Falava inglês com o pai, e alemão com a mãe. Estudou balé na Ópera de Viena, muito mais por imposição da mãe do que por prazer. O que ela gostava mesmo, desde bem pequena, era viajar de navio com o pai. - Foi nesse tempo que eu fui mais feliz - conta. Nas noites escuras, em alto- mar, ele mostrava as estrelas à pequena Helga, que aprendeu a usar o sextante (instrumento de navegação) antes mesmo de saber ler e escrever. Mas sempre havia um professor a bordo. Na volta das viagens, prestava exames na escola. - Minha vida era cheia de contrastes, mas muito divertida - diz. Os judeus na Áustria, naquela época, nem sabiam que eram judeus, comenta Helga, lembrando que eles sempre foram grandes patriotas, lutaram na Primeira Guerra, perderam seus filhos, esposos e esposas defendendo a Áustria. Ninguém perguntava que religião ou credo o seu vizinho ou amigo tinha. Os judeus eram altos funcionários no governo, cientistas, músicos e artistas, sem qualquer tipo de discriminação. Nazistas ocupam a Áustria e começa perseguição aos judeus No dia 13 de março de 1938 a vida de Helga começa a mudar. Uma semana mais tarde haveria eleições na Áustria, e era consenso que os social-democratas ganhariam outra vez. O Partido Nazista estava proibido, e seus membros viviam na clandestinidade. A família acordou no dia 13 de março com uma enorme bandeira da suástica nazista tocando o terraço. O pai, o capitão Roth, ligou o rádio e ouviu o que parecia impossível: as tropas alemãs atravessaram a fronteira e ocupavam a Áustria. Uma cena ficou gravada na lembrança de Helga: de uma hora para a outra o povo vienense, alegre, pacifista, amante das artes virou fera. Hitler falava em praça pública e as mulheres jogavam-se aos seus pés gritando 'Heil, Hitler'. Uma berrou: eu quero um filho do Fuehrer! O pai de Helga quis entrar na sua fábrica (ele havia parado de navegar para ficar mais perto da família), mas foi barrado pelo contador que trabalhava para ele há 20 anos e não era judeu. Virou o dono da fábrica. Helga foi barrada na escola. As eleições que foram marcadas nunca aconteceram, mas os judeus foram obrigados de lavar as ruas e calçadas para remover a propaganda eleitoral. - Foi uma visão horrível. Senhores e senhoras idosos ajoelhados na calçada para limpar o chão. Mas a elite de Viena, os artistas, colocaram a Estrela de Davi no peito e se juntaram aos judeus para também lavar as calçadas - comenta Helga. Pai de Helga salva milhares de judeus com seu navio Somente judeus com parentes ricos no exterior ou famosos, como Freud e Einstein, não tiveram problemas de achar lugar para onde emigrar. Um dia, tocaram a campainha da casa de Helga - o que deixava todos em estado de alerta. Poderia ser a polícia. Iriam levá-los para um campo de concentração? Até hoje Helga tem trauma da campainha. Era o filho do dono do prédio onde eles moravam, que foi avisar para esconder o seu irmão, Paul, na época com 21 anos e simpatizante da esquerda. No dia seguinte haveria uma revista no prédio para ver se não havia judeus ou comunistas escondidos. Paul precisava sair do país o quanto antes, mas para onde ir? - Todos tinham muita pena dos judeus, mas ninguém abria as portas para alguém sem dinheiro - lembra Helga. Então, seu pai teve uma grande idéia, que acabou salvando a vida de milhares de judeus. O capitão Roth (pai de Helga) fez uma proposta ao governo de Israel - que nessa época era a Palestina e estava sob domínio inglês. Cada ano uma pequena quantidade de judeus podia emigrar para Israel. Ele propôs levar os judeus que fugiam do Nazismo através do Rio Danúbio, de barco, até o Mar Negro e depois para Israel (tudo ilegalmente). Em troca, queria um visto para o filho e a filha. A proposta foi aceita. Helga recebeu um visto para Israel e uma bolsa de estudos por dois anos num dos melhores colégios internos para meninas. Foi de trem até Trieste (cidade italiana que pertencia ao Império Austro-Húngaro) e de lá, embarcou com outras 20 crianças para Israel, onde iria morar. Era abril de 1939. Em Israel, o encontro com o futuro marido Era o dia da Páscoa dos judeus quando Helga e mais 20 crianças chegaram a Israel, depois de uma viagem de seis dias, trazendo meia dúzia de peças de roupas e o passaporte só de saída da Áustria. Tinha apenas 16 anos, estava num país estranho, não falava a língua e a única pessoa que conhecia era seu irmão, Paul, que havia emigrado um pouco antes. Ele a esperava no porto, mas ficaram juntos apenas um dia. Todas as crianças e jovens foram levadas para a escola em Talpiot, entre Jerusalém e Belém. O pai de Helga foi visitá-la e contou-lhe sua grande aventura: ele havia saído da Áustria de navio, levando ilegalmente vários passageiros judeus para Israel. Tinha medo de que, se descoberto pelas autoridades inglesas, todos poderiam ser mandados de volta. Então, destruiu todos os documentos dos passageiros, para que ninguém soubesse seus nomes originais. Jogou no mar. Depois, o capitão Roth deu aulas de remo para os jovens. Calculou que na calada da noite, a umas 10 milhas da costa, poderia colocar os passageiros nos botes salva-vidas. Também os ensinou a orientarem-se pelas estrelas e seguir até um local previamente combinado com as autoridades israelenses. Mas o sonho durou pouco: salvas de advertência de um destróier inglês deu a eles ordem de parar. Os ingleses subiram a bordo, com uma lista de todos os passageiros, com nome e origem. Os judeus não foram mandados de volta porque os israelenses assumiram o compromisso de deixá-los entrar no país. Mesmo assim, foram considerados ilegais até a criação do Estado de Israel. Os passageiros foram levados até um Kibutz e receberam roupas e comida. Eclode a Segunda Guerra e Helga começa a trabalhar A Segunda Guerra começou e toda a comunicação com a Europa foi cortada. Hitler invadiu a Polônia e finalmente os ingleses declararam guerra aos alemães. Nessa época, muitos navios "ilegais" levavam judeus para Israel, pois era a última chance de escapar. O pai de Helga salvou muita gente com seu navio. Em pouco tempo começou a faltar medicamentos em Israel, uma vez que as empresas do setor, como a Bayer e a Hoechst, eram alemãs e os seus produtos não entravam mais no país. Uma firma israelense (Hillel) começou a copiá-los. Helga conseguiu um emprego como propagandista para explicar para os médicos o que significavam os novos nomes dos remédios. Ela falava diversas línguas e assim podia explicar para os médicos árabes em inglês ou alemão. Foi num baile em Haifa (norte de Israel) que Helga conheceu um jovem médico húngaro, Imre, que depois se tornaria seu marido. Ele foi transferido para Haifa, na refinaria, como médico. - Decidimos nos casar, porque havia uma grande possibilidade de Imre ser mandado para o Extremo Oriente. Nosso pensamento e de milhares de outros jovens era: vamos nos casar antes da separação, que pode ser para sempre - relembra. A chegada do primeiro filho: mais um momento difícil Helga Szmuk ficou grávida de Peter, mas o bebê nasceu quando Imre servia, como médico militar, no 14º Hospital Geral, em Cingapura. Um dia, um juiz bateu à porta de Helga, avisando-lhe que precisava abandonar o apartamento em 24 horas, porque o prédio era de propriedade alemã. Peter foi morar em uma pensão para crianças e Helga num hotel barato, ocupado quase que exclusivamente por prostitutas. No dia 9 de maio de 1945 a Alemanha se rendeu. Era o fim da guerra, mas não para a família de Helga. Seu marido, Imre, estava lutando contra os japoneses e ainda havia muita guerra pela frente. Finalmente, a grande notícia. Imre escreveu que estava à caminho de casa. Helga e Peter esperaram por este momento durante quatro anos e meio. Peter vestiu a sua roupa nova especialmente guardada para o dia em que conheceria o pai. O grande problema foi que Peter e Imre não tinham uma língua comum. Peter falava alemão com a mãe e os avós, e o idioma iwrit no jardim de infância. Imre falava húngaro (mal) e agora há muitos anos falava só inglês.

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